O professor Celso Antônio Bandeira de Mello é um dos entrevistados pela revista Consultor Jurídico na série que discute a Constituição de 1988, sua importância e seus efeitos na sociedade.
Leia a entrevista
ConJur — A Constituição Federal equilibra a relação entre Estado e cidadão?
Celso Antonio Bandeira de Mello— Sim. Não é sem razão que ela é chamada de Constituição cidadã. Ela é altamente respeitadora dos direitos individuais e dos direitos sociais. Estabelece uma relação muito equilibrada entre Estado e cidadão, o suficiente para que garantir o interesse público e também para impedir abusos de poder.
ConJur — Essa relação equilibrada funciona na prática?
Bandeira de Mello— Não. No Brasil, há duas realidades diferentes: a daqueles que têm recursos financeiros e a daqueles que não têm. A relação com o Estado só é equilibrada para aqueles que têm.
ConJur — Por quê?
Bandeira de Mello— Por diversas razões. Uma delas é que o embate do cidadão é direto com a Polícia. Se em todo lugar do mundo a Polícia merece censura, aqui ela merece mais ainda. É arbitrária, preconceituosa e violenta. Não respeita os direitos do cidadão. Outra razão para o desequilíbrio é que os ricos podem mobilizar bons advogados e até os meios de comunicação em seu favor. Os pobres, não.
ConJur — A Constituição é responsável por esse desequilíbrio?
Bandeira de Mello— Não. Existe uma tendência disseminada em achar que o Direito pode tudo. Isso não é verdade. Ele pode tudo no plano jurídico, mas não no plano da realidade. Ele apenas condiciona e tenta transformar essa realidade, mas ela tem sua própria força. Enquanto o país for desenvolvido em culto preconceituoso, é muito difícil que as melhores regras jurídicas consigam o resultado integral. Por exemplo, a lei que proíbe a discriminação racial. Não há dúvidas de que ela produz frutos, mas a transformação de uma sociedade é um processo paulatino e muito lento. Só o tempo vai resolver uma série de desequilíbrios entre o Estado e o cidadão.
ConJur — Quem muda antes: a lei ou a sociedade?
Bandeira de Mello— As duas coisas se inter-relacionam. Quando a sociedade muda, os legisladores tendem a fazer leis de acordo com essas mudanças. Outras vezes, no entanto, independentemente de qualquer mudança, os legisladores tomam consciência da necessidade de mudar e fazem leis para induzir essa mudança.
ConJur — Quais as principais conquistas do cidadão com a Constituição de 1988?
Bandeira de Mello— A Constituição de 1988 tem méritos excepcionais e está à frente do seu tempo. Há conquistas grandes como o artigo 5º, que trata dos direitos individuais, e o 7º, sobre direitos sociais. Há ainda o artigo 3º, que diz que a República Federativa do Brasil tem que ser uma sociedade livre, justa e solidária. Bastam esses dispositivos para verificar a importância que a Constituição deu para a vida dos brasileiros. Mas não pára por aí. O artigo 170 estabelece que a ordem econômica e social tem por fim fazer Justiça social e, entre os princípios para isso, coloca a função social da propriedade e a expansão das oportunidades de emprego produtivo. O texto constitucional estabelece a primazia do trabalho sobre o capital, o que é uma proteção ao cidadão. Prevê também a possibilidade de desapropriação de imóvel que não é usado para cumprir sua função social. A Constituição de 1988 foi, no entanto, prejudicada com o fim do socialismo e o início da globalização.
ConJur — Por quê?
Bandeira de Mello— Com o fim da União Soviética, a força do capitalismo se impôs no mundo e os Estados Unidos, então, criaram o conceito de globalização, que não passa de jogada de marketing para que eles pudessem penetrar na economia de outros povos e difundir essa idéia quase ridícula de que o mercado se auto-regula e cria o bem-estar de toda a sociedade. Isso tudo é a antítese da Constituição Federal aprovada em 1988. Para que o Brasil pudesse se adaptar, durante o governo do Fernando Henrique Cardoso, foram feitas emendas constitucionais que desfiguraram a nossa Constituição para permitir que multinacionais invadissem a nossa economia, já que ela, originalmente, defendia os interesses nacionais. O texto constitucional estabelecia que a exploração do nosso subsolo era privativa de brasileiros, estabelecia o monopólio estatal do petróleo, das telecomunicações, entre outros. No primeiro ano de governo, o Fernando Henrique aprovou quatro emendas que acabaram com tudo isso e eliminaram a noção de empresa brasileira de capital nacional.
ConJur — A Constituição Federal aprovada em 1988 protegia mais o mercado nacional do que a Constituição Federal de hoje, que já sofreu 56 emendas?
Bandeira de Mello— Sim. A Constituição Federal só preservou um dispositivo que protege o mercado nacional. É aquele que diz que o mercado interno é patrimônio nacional. Reafirmo: a Constituição brasileira foi altamente desfigurada para atender interesses estrangeiros, e não os nacionais.
ConJur — O senhor é a favor de uma nova constituinte?
Bandeira de Mello— Não. Apesar das falhas terríveis, a Constituição Federal é muito boa. Por ter vindo em seguida a um período de autoritarismo, trouxe em seu bojo um espírito nacional de defesa da cidadania. É claro que mudanças são necessárias, mas elas podem ser feitas aos poucos.
ConJur — A Constituição Federal, da maneira que foi aprovada em 1988, desenha uma sociedade ideal?
Bandeira de Mello— Sim.
ConJur — Mas é uma sociedade possível?
Bandeira de Mello— É sim. Nos últimos anos, o Brasil tem passado por muita transformação. Saiu na imprensa outro dia que mais de 8 milhões de brasileiros passaram das classes D e E para a classe C. Isso é uma transformação que nunca existiu na história do Brasil. O que é preciso é uma presença estatal muito mais forte. Não sou a favor da socialização dos meios de produção, mas a favor da socialização do que é básico, como saúde e educação. Os serviços públicos básicos têm que estar na mão do Estado.
ConJur — Qual dos três poderes mais desrespeita a Constituição?
Bandeira de Mello— É impossível dizer isso porque o texto constitucional diz que são três poderes independentes e harmônicos entre si. Mas, a Constituição de 1988 deu muito mais poder ao Judiciário do que ele tinha no passado.
ConJur — O Supremo tem sido bastante criticado por querer garantir direitos fundamentais de quem a sociedade já taxa como criminoso?
Bandeira de Mello— Nesse episódio do Daniel Dantas, o ministro Gilmar Mendes agiu muito bem. Não é possível passar por cima de direitos e garantias individuais. A imprensa gosta de vender jornal e, quase sempre, toma o lado errado. A população, então, acredita ingenuamente que a imprensa serve para informar e dizer a verdade. Não é. Ela quer é ganhar dinheiro. É uma atividade empresarial como qualquer outra. Mas a nossa população, infelizmente, é bastante idiota ainda.
ConJur — É possível combater o crime sem atropelar os direitos constitucionais?
Bandeira de Mello— Sim. A maior parte dos países consegue isso. À medida que melhore o nível da população, a criminalidade vai cair. Outro fator que ajuda é a verdadeira responsabilização dos culpados. O criminoso não tem medo de praticar um crime se sabe que não vai ser punido.
ConJur — O discurso daqueles que defendem o grampo telefônico é o de que é a única maneira de investigar o crime organizado, cada vez mais sofisticado. Qual sua opinião sobre isso? Há abusos e excesso de autorizações judiciais para grampos infindáveis?
Bandeira de Mello— Alguns poucos juízes têm mentalidade de investigador de Polícia e, aí, tudo pode acontecer. Eu aceito o grampo telefônico, mas ele não pode ser regra. Os juízes precisam ser equilibrados ao autorizar escutas. Não dá para grampear todo mundo. É perfeitamente possível combater a criminalidade dentro da ordem jurídica.
ConJur — O Brasil tem motivo para comemorar os 20 anos da sua Constituição?
Bandeira de Mello— Tem. O país só viveu como a democracia mesmo sob o império da Constituição de 1988. Nesses 20 anos, não tivemos mais golpes. Por conseguir sobreviver sem golpes, a Constituição de 1988 é valiosa.
Revista Consultor Jurídico, 28 de setembro de 2008
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